28 abril 2008

Maré de tranqüilidade

Conforme já comentei aqui, estou lendo The Wanderer, de Fritz Leiber. A idéia do livro é simples: de repente, não mais que de repente, oriundo do hiperespaço durante um eclipse lunar, surge um planeta bem junto da Terra, logo além da órbita da Lua. O Autor demonstra os fenômenos que decorrem daí e as diferentes reações das pessoas.

Foi por causa dessa premissa que comecei a ler o livro. O que eu não sabia era isto: que a narrativa é arrastada e que está fragmentada em (que eu lembre agora) doze perspectivas, cada uma com seus protagonistas tendo uma visão parcial do fenômeno. Bem, tendo eu lido metade do livro, ele melhorou da chatice e, apesar dela, persisto porque estou muito curioso em saber o que o Autor propõe.

A propósito, é sintomático que, quando fui pesquisar sobre The Wanderer na Internet, eu tenha encontrado várias resenhas repetindo a mesma crítica que fiz acima: há personagens demais e a narrativa fica toda entrecortada. Com isso, o próprio Autor revela-se incapaz de uma caracterização adequada, patinando e cansando o leitor.

Mas não foi pra falar disso que entrei no assunto. É o seguinte: o planeta tem massa semelhante à da Terra. Sua proximidade causa tremendos efeitos de maré sobre a Terra e, mais importante, sobre a Lua. Na primeira, o mar sobe muito além do que a civilização consegue tolerar, e a segunda é toda deformada e partida em pedacinhos. Vai daí que, em certa passagem, um cientista lembra que a força de maré decai com o cubo da distância.

Na hora, parei a leitura e pensei: tem algo errado. A força de maré é uma decorrência da gravidade, e esta decai com o quadrado da distância, não o cubo. Mas o Autor insistiu no parágrafo seguinte e ainda deu um exemplo. Além do mais, não escreveu o algarismo 3, mas pôs “cube” por extenso.

Nesse ponto, vocês sabem o que eu tinha que fazer: consultar minha nova amiga, a Wikipedia. Para meu espanto, o verbete sobre a força de maré não só confirma que ela decai com o cubo da distância como ainda mostra a dedução da equação.

(Incidentalmente, se você precisa saber, grosso modo é o seguinte: a força de maré é um diferencial da força da gravidade. Expandindo a gravidade em uma série polinomial, a força de maré aparece no segundo termo e é por isso que sua potência é –3 em vez de –2. Mas isso não interessa.)

O enfoque aqui é o seguinte: senti placidez ao ver a dedução da equação.

É preciso entender que, durante todo o curso de Matemática do segundo grau e, depois, durante todo o curso de Engenharia, você aprende a nunca aceitar uma equação pelo valor de face. Todas as equações que expressam leis naturais devem ser provadas através de dedução. Isso faz todo o sentido, porque a carreira do engenheiro será construída sobre o pressuposto de que as equações são válidas, e não haverá tempo para ficar verificando se estão corretas. Então, você deduz uma por uma, penosamente, para prová-las para si mesmo, uma única e sólida vez, não ter mais que olhar para trás depois e poder consultá-las sempre que quiser, sabendo que é território já conhecido e provado. Desse ponto em diante, elas podem ser consideradas verdadeiras, e você saberá todos os pressupostos que vão implícitos, todas as premissas e, a partir delas, os limites até os quais se pode acreditar em cada equação.

Então, ao longo da minha vida, toda vez que me deparei com uma equação, tornou-se uma reação quase instintiva verificar se realmente ela estava correta, se nenhum termo estava faltando, quais eram as premissas. É verificar se posso acreditar no que estou lendo, do mesmo modo como você confere a retórica de qualquer texto, verificando se os argumentos são válidos, se o Autor não omitiu nada, se seus exemplos se aplicam. Porque uma equação é um argumento como qualquer outro, sujeito a verificação para o Autor te convencer com base na credibilidade que adquiriu junto a você. Isso é importante, porque às vezes eles erram mesmo, e as conclusões passam a estar furadas. Minha própria dissertação de mestrado nasceu de um erro de sinal cometido por um conceituado pesquisador ao deduzir uma equação. Levei meses para aceitar que o cara realmente tinha errado, mas a oportunidade de fazer do jeito certo foi uma das grandes motivações do trabalho.

Assim, quando a Wikipedia mostrou a dedução da equação da força de maré, senti uma tremenda segurança: eu já tinha passado por tudo aquilo, todas as grandezas físicas eram minhas conhecidas. Especìficamente, nunca havia estudado a força de maré, mas isso não importava, porque eu tinha a certeza de que, com o conhecimento de que a escola me munira, a qualquer tempo seria (e sou) capaz de conferir se a dedução está correta.

E o melhor de tudo é que não tenho que. Eu não estava interessado na fórmula exata, nem queria verificar se estava correta, nem seria obrigado a isso: bastava-me confirmar se o denominador tinha um raio ao cubo, e passei a ser o responsável por minha própria certeza e meu eventual e irrelevante erro. Há uma demonstração para acompanhar, e sempre existe o argumento de autoridade de que, se o digitador se deu ao trabalho de demonstrar (e com isso deu a cara a tapa, porque qualquer um pode conferir), então provavelmente está certo. E não abro mão do poder de verificar a correção. É só que não tem importância nenhuma, não estou projetando nenhum satélite para estar proibido de errar a conta.

Então, vejam: eu procurava a confirmação de uma declaração que encontrei em um livro. O Autor não é nenhum tolo. Se sua ficção científica é respeitada, é que ele tomou certos cuidados e não ia cometer um erro desses. Aí, fui investigar e encontrei demonstração de que a força realmente decai com o cubo da distância, qualquer que seja a fórmula completa. É quanto basta, e me senti totalmente por cima daquilo tudo, território já dominado, onde tàcitamente sei tudo que preciso saber para me convencer da correção do aprendizado novo. As equações apareciam desnudadas para mim, sem possibilidade de se imporem, de eu ter que ficar quebrando a cabeça com alguma realidade física desconhecida.

A propósito, meu exemplar é tão velho e está tão seco que vai se fragmentando à medida em que vou lendo. As páginas vão quebrando quando são abertas e acabam caindo, de modo que, por mais que eu leia, não muda o número de páginas entre a primeira e o ponto onde estou. O negócio é ler mais rápido do que o livro se desfaz antes que ele me alcance, feito Tom Hanks subindo a escadaria em Um Dia a Casa Cai.

Recém-lidas:
Justice League America #61 (abril de 1992);
Justice League Europe #37 (abril de 1992), apenas as primeiras páginas;
Flash #62 (início de maio de 1992);
The Sandman #37 (maio de 1992).

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