29 janeiro 2008

A incrível materialização súbita dos eletrodomésticos

No último sábado, estive em uma loja de uma grande cadeia que vende eletrodomésticos. Olhei alguns modelos de máquinas de lavar roupa e chamei a vendedora. O diálogo abaixo realmente aconteceu.

-- Aqueles preços ali incluem frete?

-- Não.

-- Então, quanto é o frete?

-- ! (Com cara de espanto e um pouco ofendida:) Não custa nada, é de graça! O (nome da loja) faz questão de entregar o produto no local!

Fico pensando. O preço não inclui frete, e o frete é de graça. Será mesmo possível? A vendedora parece acreditar que um caminhão mágico milagroso sùbitamente aparece e entrega a máquina a custo zero. A loja chama, o Papai Noel vem, põe no trenó e aparece na porta da sua casa, com a pranchetinha, pedindo para você assinar aqui.

Melhor do que isso, só mesmo a vergonha que presenciei em Aracaju na noite de 21/01/2008. No saguão do hotel Ibis, um sujeito de terno discursava para meia dúzia de vítimas em volta da mesa. Ele contava das perspectivas para quem aderisse ao negócio que estava propondo: você paga a mensalidade. Aí, em uma semana, você tem que chamar mais duas pessoas. Cada uma delas, por sua vez, paga para você e chama outras duas. E cada uma outras duas. E assim por diante, até que, por meio de outra matemática milagrosa, em cinco semanas você está ganhando mais de nove mil reais. Aí, conforme seu resultado, você vai sendo promovido a supervisor, ou a membro ouro, diamante, sei lá. E ganha um fim de semana num resorte à beira-mar.

Na verdade, considero o golpe muito justo, porque explora a ganância: a vítima não é nada inocente. Mas é mesmo engraçado como ninguém pensa um minuto. Para um negócio desses se manter, o cara tem que consistentemente encontrar novas vítimas toda semana, fazendo potências de dois até que, pelos meus cálculos grosseiros, em menos de sete meses TODA a população do Brasil (cada velho, homem, mulher, criança e molambo) estará pagando a mensalidade do cara. Parece aquela história da recompensa do cara que inventou o xadrez, a ser paga em grãos de trigo. Por menos do que isso, a Albânia quase faliu nos anos 90: um terço do país entrou em um esquema de pirâmide e perdeu tudo.

25 janeiro 2008

Ases na Carioca

É engraçado como, às vezes, seu passado volta inesperadamente.

Quando eu estava na escola, freqüentava a biblioteca intensamente. Li vários livros emprestados, outros lá mesmo. Um dos primeiros que li foi o que mais me marcou e o de que mais gostei: Ases da guerra aérea, de Edward Sims, publicado pela editora Record no final dos anos 60. São doze narrativas de combates aéreos vividos por pilotos de caça na II Guerra Mundial. As descrições são envolventes e detalhadas, as narrações são feitas com os verbos no presente, e todo o estilo do Autor leva o leitor a se sentir pràticamente dentro dos cockpits. Toda a percepção dos pilotos, seu raciocínio e suas emoções, tudo isso é transmitido de modo a fazer com que o leitor sinta que é ele que está vivendo tudo aquilo. Foi um dos livros que mais me absorveram até hoje, e devorei-o em poucos dias.

Vários anos depois, atentei para algo que me fugira: o tradutor de Ases da guerra aérea foi Ronaldo Sérgio de Biasi, que é pesquisador de Ciência dos Materiais e foi (ou ainda é, não sei) decano do Instituto Militar de Engenharia e editor da versão brasileira da Isaac Asimov Magazine no início dos anos 90. De Biasi também traduziu inúmeras obras de Asimov para a Record e é um grande conhecedor daquele profícuo Autor de ficção científica.

Agora há pouco, eu voltava do almoço pelo caminho que liga a avenida Rio Branco à estação de metrô da Carioca quando parei em uma das várias bancas de livros usados que ficam naquela calçada. Qual não foi minha surpresa quando me vi diante de American Aces, de Edward Sims, publicado originalmente em 1958. Nesta edição mais recente, de bolso, da Ballantine, a capa mostra um P-38 em primeiro plano e, indefectivelmente, um avião japonês em chamas ao fundo.

Peguei para folhear as páginas amarelas, que já se soltavam da lombada onde a cola estava seca pelo tempo. Lá estavam exatamente os doze capítulos de que me lembrava, começando com um piloto de P-40 sobre a China, passando pela emboscada sobre a Nova Guiné com o P-38 da capa e terminando com um P-51 a contribuir para a derrocada da Luftwaffe. As figuras originais também estavam presentes, esquematizando as evoluções dos protagonistas no ar de forma a facilitar o entendimento do leitor.

Por alguns momentos, fui transportado de volta àquele final dos anos 80, à cabine de comando daquelas aeronaves e à contínua viração de páginas que me trouxe excelentes horas de lazer quase vinte anos atrás. É curioso como você não esquece certas coisas dos livros que lê.

03 janeiro 2008

Se eu tivesse um dia para viver, eu lhe diria isto

Você sabe o turbilhão que é conduzir uma vida moderna de classe média. Empregos, prazos, contas a pagar, aplicações financeiras, compromissos, escola dos filhos, médico, reunião de condomínio. Gastamos tempo demais em tarefas minúsculas, cada uma das quais não tem a menor importância.

Então, de vez em quando, você lê algum poema, ou a carta final de alguém que está morrendo de câncer, ou aqueles conselhos atribuídos a Jorge Luis Borges. São unânimes: sempre dizem que leriam menos email, que telefonariam menos para o gerente do banco, que se preocupariam menos com prazos e com as notas na escola.

É claro que eu não faria nenhuma dessas coisas se soubesse que fosse morrer, digamos, amanhã. Só que há um detalhe que esses textos omitem: se você realmente fosse levar sua vida como sugerem, ela logo se transformaria em um pequeno inferno. Se você não escovar os dentes todos os dias, terá cáries e sofrerá dores. Se você não fizer seu orçamento mensal, pode gastar mais do que pode, seu dinheiro vai acabar e você não vai poder fazer aquela viagem dos sonhos. Se você não se preocupar com seu desempenho acadêmico, não vai se qualificar, sua vida terá mais obstáculos e você não vai conseguir conforto na vida nem fazer o de que gosta. Se você não prestar atenção ao que come, vai enfartar ou ter um derrame, e sua vida vai ser bem mais curta e menos feliz. Se você não for votar, não vai conseguir passaporte para visitar sua família na Europa.

Olho para trás e percebo: tudo que tenho de bom na vida decorreu de esforço e raciocínio. Tudo veio de escolhas deliberadas e da insistência em determinados cuidados: pesquisa demorada, noites sem dormir, cumprimento de prazos, segurança da informação (tanto sua guarda para não perder quanto seu sigilo), atenção aos detalhes e disciplina.

Para aquelas pessoas darem aqueles conselhos, é que já viveram o suficiente para apreciar os erros e acertos de seus atos. Mesmo assim, não perceberam que a extensão de suas vidas, a instrução que tiveram para aproveitá-las e o conforto que tiveram, tudo isso decorreu dos cuidados que, sim, são desagradáveis, mas são necessários. A crítica só é possível porque praticaram aquilo que criticam. Não chego ao ponto de dizer que sejam hipócritas (para isso, seria preciso terem má fé, o que não vejo), mas talvez estejam sendo inconseqüentes.