18 março 2008

A vida está lá fora

Minha vida tem sido assim: acordo, me arrumo, vou trabalhar, passo o dia trabalhando, volto pra casa no ônibus cheio, banho, janta, computador, cama. Nisso, o melhor do dia acaba desperdiçado: duas horas são gastas no trânsito e nove, dez ou mais, no trabalho. Toda a luz do dia vai embora, e a parte de minha vida que fica para mim, mesmo, está toda no escuro. Isso está me frustrando, sinto que não estou aproveitando o tempo. Que não estou realmente tendo minha vida para mim.

Essa preocupação foi ressaltada pela leitura de October the First Is Too Late (que comentei ontem). Quando o protagonista visita a Grécia Antiga, constata que todos vão dormir assim que o Sol se põe, mas que as horas do dia são todas aproveitadas. Isso me fez refletir sobre como o uso da luz artificial permitiu que a sociedade moderna deslocasse o aproveitamento do tempo para o turno da noite. Trabalhamos a mesma quantidade de horas (ou menos até do que naquele tempo), mas ficamos acordados até mais tarde. Não somos mais aqueles escravos, que *só* trabalhavam, mas tampouco somos aqueles patrícios, que viviam no ócio. Antigamente, ou você era um ou era outro, não tinha meio termo, e quem trabalhava trabalhava o dia inteiro. Hoje, sendo classe média, fazemos um esforço para conciliar: trabalhamos feito escravos durante o dia e tentamos recuperar umas migalhas à noite, no esforço de retomar algum tempo para nós mesmos feito aqueles cidadãos livres (ou trabalhamos de dia e de noite, o que é pior ainda).

Mas são mesmo apenas migalhas. Quando anoitece, a parte boa do dia já foi toda embora, já estamos cansados e a luz não é a mesma. Fica uma impressão de que é preciso correr para aproveitar o pouco tempo, como quem toma banho com pouca água.

Esta semana, eu estava conversando com um colega de trabalho cuja opinião muito respeito. Comentei com ele uma sensação que tenho freqüentemente e que funciona assim: um Autor, que nem lembro mais qual é, disse certa vez que “a vida está em outro lugar” (foi Clarice Lispector?). É uma frase que me impressiona muito. Apropriando-me dela à luz do que comentei aí em cima, adaptei-a para “minha vida está lá fora”: vou trabalhando, vendendo meu tempo, fazendo coisas que não são nem de longe tão divertidas como todas as outras que eu poderia estar fazendo lá fora do local de trabalho. Estou me privando de minha vida e de todas as atividades (mesmo as tarefas administrativas, como ir ao banco, ao cartório, ao supermercado) que poderia estar fazendo se não tivesse que passar as horas ali dentro.

Esse meu colega é um filósofo. Disse que poderia generalizar a frase de que eu me apropriara e dizer que “a vida está lá fora”. Nosso local de trabalho é um pequeno mundo recluso, separado do verdadeiro mundo lá de fora, com regras próprias, jargão próprio, preocupações e prioridades próprias, distintas das do mundo real. Quando vamos embora, tudo lá se torna mais distante, irrelevante, e voltamos a lembrar quem somos, nossos gostos e prioridades.

Uma conclusão já se pode tirar de tudo isso. Das cerca de onze horas que passo em casa, seis -- ou seja, metade -- eu passo dormindo. Então, tenho que aproveitar bem essas horas de sono. Tenho que escolher bem meus sonhos, aproveitá-los bem: em sonhos, só ler bons livros, ter bons diálogos, praticar boas atividades. Porque são as horas que tenho.

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