31 outubro 2008

Síndrome da paisagem

Esta mensagem da Bárbara Axt estimulou-me a vir repetir um tema antigo que me é muito caro. Existem livros demais, filmes demais, quadrinhos, artigos de revistas, da Web, coisas demais para ver, e não dá tempo de aproveitar tudo no tempo de uma só vida. Chamo a isso de síndrome da paisagem: sou como um cego, sabendo que está diante de uma paisagem mas incapaz de admirá-la. Posso ler um zero vírgula por cento de tudo quanto há, mas quase tudo vai escapar.

Como se isso não bastasse, cada obra que você consome também o estimula a pensar, comparar, correlacionar e, se tiver disposição, escrever mais. Então, só acumula, acumula, acumula. A produção vai ficando gigante, bola de neve mesmo. Em Engenharia, a gente diz que é um caso de retroalimentação positiva: o resultado do processo contribui para ampliar a causa do mesmo processo. (Na retroalimentação negativa, o resultado diminui a causa.)

Um problema é onde e como armazenar toda a produção, que, em princípio, é o legado da humanidade, com tudo que tem de bom e de ruim. Escolher o que preservar, e o que não, é basicamente uma questão ideológica, então presumo guardar tudo. Outro problema é como indexar para recuperação: não adianta você ter a informação e não conseguir chegar até ela, porque isso equivale a não tê-la.

Um terceiro problema, este pessoal mais do que institucional mas comentado pela Bárbara, é você ter tempo de organizar seus pensamentos e deitar a pena ao papel. No meio da azáfama, acabamos sufocados e não conseguimos sequer terminar as tarefinhas que começamos. Ela está em busca de uma solução e eu, que compartilho a dor, desejo-lhe sucesso.

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Mudando de assunto, hoje eu caminhava em frente ao Centro Cultural da Justiça Federal quando vi a placa em (suposto) inglês para benefício de turistas. Só olhei de relance, mas sei qual é o conteúdo: a placa comenta o próprio prédio, que, històricamente, foi a sede do Supremo Tribunal Federal. No meio do texto, meu olho bateu em "... The Hearing Room was..." e pensei, "hearing room"? Sala de ouvir? Traduzindo de volta, entendi que é a sala de audiências, courtroom ou, sendo benevolente com o tradutor, audience room. Fico pensando no pobre turista, deparando-se com uma sala que escuta. Sabe como é, as paredes têm ouvidos.

28 outubro 2008

Mão-de-obra não especializada

Eu na Barnes & Noble, fechando uma compra de US$ 125. A moça do caixa anuncia que, se eu tiver um cartão da loja, tenho 10% de desconto, pergunta se tenho um (não tenho) e se quero fazer. Quanto tem que pagar? pergunto. 25 dólares. Aí eu disse (deveria ter só pensado, mas cometi o erro de falar em voz alta), pago 25 para ter um desconto de pouco mais de 12...

Ao que ela me interrompeu: -- Não sei, não sou boa com Matemática.

Então, como vocês estão vendo, não é só aqui que eles põem as pessoas mais desqualificadas para atender no balcão. Em Nova Iorque também. Fico pensando se não é um requisito para assumir o emprego.

Em tempo, e é claro que isto não tem nada a ver: naquela grande metrópole judaico-cristã ocidental, constatei que os motoristas de táxi, engraxates, arrumadeiras de hotel, vendedores e balconistas em geral são todos oriundos ou da América Latina, ou do Extremo Oriente (China, Vietnã, Filipinas), ou do Subcontinente Indiano (Índia, Paquistão), ou da África Meridional (Quênia, África do Sul). Os nativos estão todos em ocupações que rendem mais dinheiro. Você pode não acreditar, mas falei mais portunhol do que inglês na Grande Maçã.

16 outubro 2008

Cada um tem os alienígenas que merece

Segundo a manchete do jornal popular Expresso de hoje, ontem à noite houve uma assustadora visão no Rio de Janeiro. Moradores da zona Norte teriam visto um enorme objeto redondo e iluminado flutuando no céu, acima do Engenhão, e depois desaparecendo. O jornal traz a sugestão de que tenha sido uma visita de alienígenas.

Mas que coincidência! Ontem à noite, eu também vi um enorme objeto redondo e iluminado no céu. Era a Lua cheia, belíssima, que a neblina tornava amarela. Depois, com a ventania, as nuvens encobriram o céu do Rio e a Lua desapareceu.

Acho que era um OOI: objeto orbitante identificado.

14 outubro 2008

Em brancas nuvens

Ontem à noite me dei conta: nove dias atrás, a Constituição de 1988 fez vinte anos de promulgada e ninguém parece ter reparado nisso.

10 outubro 2008

Frustrações urbanas variadas

Uma das formas de se escrever um belogue é o fluxo de consciência. Muitos Autores de vanguarda escreveram assim no século XX; talvez a mais famosa no Brasil seja Clarice Lispector. Faz muito tempo que venho querendo imitar esse estilo, e o belogue pretendeu ser uma tentativa, que, na verdade, acabou nunca tendo início. E ainda não vai ser desta vez, mas hoje os pensamentos serão quase tão desconexos quanto.

Estou lendo 1984 (que, na verdade, chama-se Nineteen Eighty-Four, por extenso). Para minha agradável surpresa, logo no início do livro o protagonista tenta escrever um diário, e o que sai é mais ou menos o que eu imaginava que fosse sair quando também eu tentasse: diante da página em branco, ele simplesmente deixa jorrar um conjunto impulsivo e atropelado de sensações sem pontuação.

Talvez eu seja apenas ansioso. Tenho andado muito pensativo porque insatisfeito, especialmente por causa de meu mau gerenciamento do tempo. Mas equilibro meu desconforto com um otimismo calculado e deliberado: de que, a cada dia, na verdade a cada instante, renova-se meu propósito de fazer certo daquele momento em diante. Assim: errei até as 19:48 h, mas às 19:49 farei direito, farei certo.

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Tem chovido todo dia no Rio de Janeiro. Todo dia a chuva é fraca mas longa e fria. Gosto dos dias chuvosos, introspectivos, mais calmos; mas não do chão molhado, do óculos molhado, do guarda-chuva desajeitado importando água para onde ainda estaria seco.
Quando esfria no Rio de Janeiro, mais ainda quando chove, existe um aspectozinho mesquinho e nefasto da rotina que piora a vida de todo o mundo: a primeira coisa que povão faz é fechar as janelas do ônibus, a de cima e a de baixo. Fica aquela estufa móvel cheia de gente tossindo, você quase consegue ver as doenças respiratórias trafegando no ar graciosamente parado dentro do veículo. Como povão não foi à escola, perdeu aquela noção sanitária básica segundo a qual tem que haver renovação do ar. Sim, vai entrar um pouco de vento, mas a chuva nunca entra nem vai dar pra sentir frio. Ainda que desse, é muito melhor do que a tuberculose, pneumonia, gripe ou resfriado que virá voando na última tossida do infeliz que dorme a seu lado.

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Exame de saúde periódico, exigido por meu empregador. A moça preparava a seringa quando viu o livro no meu colo (1984) e o adesivo na capa, “3 for 2 -- bargain price -- only if marked”.

-- Esse livro é de inglês?

-- Não, não é de inglês. Mas está em inglês.

-- Ahn.

Enquanto ela me espetava o braço (e eu dava meu sangue pela Companhia), senti que eu estava dizendo pouco. Se, por um lado, ela estava sendo discreta e respeitosa ao não perguntar mais nada (ou, o que é mais provável, apenas odiosamente desinteressada, para que perder tempo com livros, não é mesmo?), por outro lado senti que não era possível que eu não comentasse mais sobre a obra, o mínimo que fosse. Sim, eu sei, ela não queria ouvir, mas, pombas, tinha que ir até o fim, ainda que o fim fosse próximo. Então, enchido o segundo tubinho de plasma e tudo que nele vai em suspensão, complementei:

-- É um dos livros mais importantes que já foram escritos.

-- Ah, é?

... Ao que, como se eu não tivesse dito nada, o resultado sai em cinco dias úteis, a senha está no protocolo, se quiser ali tem biscoito. Tenha um bom dia.

Tenho certeza de que, desta vez, provoquei uma inversão: o chato insistente fui eu. Mas não deixo de sentir que algo não está bem. Provavelmente a moça adora assistir ao Big Brother Brasil -- Big Brother, marque minhas palavras -- e nunca ouviu falar de 1984. A ironia é gritante, entende? a verdade está implorando para nos libertar, eu tinha que fazer alguma coisa. So much for minha evangelização.

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Por falar no quê, tenho vagarosamente desenvolvido um tema que discuti recentemente com o Filósofo. Olhe só: a gente lê nos jornais que o tráfico está matando transeuntes lá pro lado do Alemão. A gente lê que determinado bandido foi preso, vê a fotografia do sujeito de cabeça baixa na delegacia, vê imagem do blindado da polícia em algum acesso à favela. Todas essas evidências trazem um tom de palpável, inquestionável realidade.

E se Benny Cemoli não existisse?* E se fosse tudo falso? A realidade da qual tenho certeza (e nem desta tenho certeza) é apenas a que vejo entre casa e trabalho, por onde passa o ônibus, e onde mais trafego. O que o jornal me traz são abstrações, não tenho provas de nada. Meu ônibus não é assaltado, não pega desvio por causa de algum tiroteio, aquela notícia não se relaciona a meu mundo. Mais do que não me afetar: é irrelevante seu caráter de verdadeira ou falsa, tal como uma obra de ficção. O jornal passa a ser como uma novela ou folhetim, cujo próximo capítulo leio no dia seguinte.

E assim com tudo: a crise das bolsas e a montanha-russa do dólar; a estatização do petróleo no Equador; o resultado das eleições municipais. Tudo abstrações. Agora mesmo, que estou há três meses sem ver televisão, percebo que não preciso dela, meu mundo não muda, está só dentro de casa, dos lugares aonde vou e dos livros que leio (onde tenho a certeza da ficção). Meu mundo sempre esteve circunscrito a apenas isso, e o dinheiro no banco é apenas questão de crédito: eles me dizem que tenho tanto, então tenho.

Faça o teste. Imagine ler as notícias como se estivessem acontecendo em outro planeta, outro universo, e você vai ver que, de fato, o imediato a sua volta não é afetado por elas.

Qualquer dia me oferecem uma pílula azul e outra vermelha e descubro que estou flutuando dentro de uma gosma rosada e que não tenho nenhum pêlo no corpo.

* Título de um conto de Philip K. Dick, onde um exército descobre que seu inimigo era apenas uma ficção de jornais que, aliás, estavam sendo editados por um computador descontrolado.