Alguns meses atrás, fiz um teste de Rorschach. Você sabe, aquele com os borrões simétricos: você olha e diz ao psicólogo o que está vendo. Aliás, foi nesse mesmo teste que a piscicóloga disse "largata".
Um dos borrões tinha genitais femininos. Perguntei à psicóloga se, diante de uma obscenidade, eu dizendo que era isso que via, a que isso levaria? e ela respondeu, eu tomaria nota. Bem, sob o risco de ser rotulado de tarado, disse que era isso que estava vendo. Mais tarde, à noite, fui ao Google e encontrei uma página com o gabarito do teste: de acordo com ele, se eu não visse genitais femininos naquela figura, aí eu seria considerado anormal. Da mesma forma a figura onde vi dois ursos fazendo um high five: pelo gabarito (complementado por outra página, cujo URL me foge), eu deveria mesmo ter visto duas figuras gordas (palhaços, na verdade) encontrando-se.
Mas o que vim comentar é outra coisa. Há uma figura onde vi uma das torres de Las Vegas. Isso está influenciado pelo fato de que gosto muito de assistir a C.S.I., e a série sempre começa com uma vista aérea da cidade, seus espigões ao sol, hotéis, obeliscos e miniatura da torre Eiffel assando, o deserto ao fundo. Então, eu vejo uma forma longilínea vertical, eu digo que é uma das torres de Las Vegas. Certo?
Bem, o gabarito diz que aquela porção do desenho é um símbolo fálico e que é isso que uma pessoa normal tem que ver. Bem, foi o que vi, não foi? Torres e obeliscos são símbolos fálicos, são manifestações artísticas com uma noção de pretenderem impor-se, de projetarem-se. O que acontece é que, através do teste, percebi nìtidamente o que não percebera até ali: o quanto Las Vegas está imbuída de uma simbologia que é a própria materialização representativa do sonho americano. Toda aquela idéia de avançar para Oeste, conquistar o terreno, expor ao mundo a pujança, a capacidade e a disposição, toda essa necessidade que os americanos têm de mostrar como são machos alfa, conquistadores valorosos e intrépidos empreendedores. É interessante como um teste psicológico que eu fiz mostra um bocado sobre a psique dos outros.
18 março 2007
Quantos Caios Mários vale um Batman?
Esta aqui aconteceu na tarde de 18 de julho de 2006, mas só agora tive tempo de vir digitar.
Saindo do Cinemark, aonde acabara de assistir a Superman Returns, eu andava por Botafogo. Passei pela Voluntários na altura do metrô. Ali há uma banca-sebo, onde um cartaz prontamente chamou minha atenção: "livros de Direito - R$ 1,00". Always on the lookout por uma promoção, fui ver que livros eram esses. Havia vários volumes do Caio Mário, do Sílvio Rodrigues (são Autores respeitados de Direito civil, e os livros em questão fazem parte de coleções que são cursos inteiros da matéria), Mirabete e Damásio (esses dois são de Penal), todos em excelente estado embora pegando sol e poeira do lado de fora (colecionadores de livros sabem o mal que isso faz). Um Caio Mário novo está custando algo como R$ 73. Esses volumes de Civil eram pré-Código de 2002 e, portanto, desatualizados. Mas são livros que explicam o significado de vários termos e as definições e naturezas de vários institutos, de modo que continuam valendo apesar da alteração legislativa. Portanto, o preço era uma excelente pechincha.
Saí da banca com sete volumes e fui caminhando, debaixo de um sol inclemente, até o Rio Sul, onde almocei em excelente companhia e de onde fui embora de ônibus.
Agora, considere o seguinte. Gastei R$ 7,00 em sete volumes de valorizados Autores de Direito civil. Por apenas R$ 6,90, eu compro uma revista novinha do Batman, ou do Super-Homem, ou da Liga da Justiça, que é muito mais leve de se carregar e mais atualizada, também.
Portanto, uma revistinha do Batman vale sete volumes do Caio Mário.
Saindo do Cinemark, aonde acabara de assistir a Superman Returns, eu andava por Botafogo. Passei pela Voluntários na altura do metrô. Ali há uma banca-sebo, onde um cartaz prontamente chamou minha atenção: "livros de Direito - R$ 1,00". Always on the lookout por uma promoção, fui ver que livros eram esses. Havia vários volumes do Caio Mário, do Sílvio Rodrigues (são Autores respeitados de Direito civil, e os livros em questão fazem parte de coleções que são cursos inteiros da matéria), Mirabete e Damásio (esses dois são de Penal), todos em excelente estado embora pegando sol e poeira do lado de fora (colecionadores de livros sabem o mal que isso faz). Um Caio Mário novo está custando algo como R$ 73. Esses volumes de Civil eram pré-Código de 2002 e, portanto, desatualizados. Mas são livros que explicam o significado de vários termos e as definições e naturezas de vários institutos, de modo que continuam valendo apesar da alteração legislativa. Portanto, o preço era uma excelente pechincha.
Saí da banca com sete volumes e fui caminhando, debaixo de um sol inclemente, até o Rio Sul, onde almocei em excelente companhia e de onde fui embora de ônibus.
Agora, considere o seguinte. Gastei R$ 7,00 em sete volumes de valorizados Autores de Direito civil. Por apenas R$ 6,90, eu compro uma revista novinha do Batman, ou do Super-Homem, ou da Liga da Justiça, que é muito mais leve de se carregar e mais atualizada, também.
Portanto, uma revistinha do Batman vale sete volumes do Caio Mário.
04 março 2007
Conversinha com operadora de celular
A conversa narrada abaixo é verdadeira, aconteceu em 12/02/2007. Substituí todos os nomes por expressões entre colchetes.
-- É da [operadora de celular]. Você atende?
Sempre atendo quando é de lá. Porque podem estar querendo me comunicar que, na percepção deles, haja alguma irregularidade, que eu esteja devendo (embora não esteja), que a fatura vá atrasar neste mês etc. Se houver mesmo um soluço desses, não quero ficar sem saber; depois eles sempre poderiam alegar, em juízo, que haviam me avisado ou tentado me avisar. É preciso tirar-lhes essa vantagem. Então, atendo sempre.
-- Boa táride, Sr [censurado]?
-- Sou eu.
-- Sr [censurado], aqui é [Fulano], da [operadora], tudo bem?
-- E aí, beleza?
-- Tudo bem. Sr [censurado], eu icitou ligândo puriquê o Sr foi icicolhido como nosso cliente preferencial
Acho que TODOS os clientes deles são “escolhidos como clientes preferenciais”. Na hipótese mais exclusiva, devem ser, no mínimo, todos os que pagam em dia. Mas acho que são todos todos mesmo.
... como nosso cliente preferencial para pariticipar do [operadora] Clube [bandeira de cartão de crédito], onde o Sr, Sr [censurado], utilizando o caritâo, o Sr acumula pontos, podendo torocar esses pontos pôri telefones celulares da [operadora] ou pôri pacotes de minutos.
Tenho certeza de que é mentira. Sempre é mentira. Quando eu fosse resgatar esses pontos, eles viriam com as letrinhas pequenas, dizendo que meu contrato não permite, ou que não nessas condições, ou que só se tivesse usado tantos minutos excedentes, ou só se não tivesse usado nenhum minuto excedente, ou que eu tinha que me cadastrar antes, ou que eu tinha que solicitar antes, ou que teria um débito a mais na fatura... Mesmo que não, os pacotes de minutos também têm sempre um catch: diriam que a legislação mudou, ou que meu plano não permite, ou que meu limite não cobre, ou que meu plano é antigo, ou que meu plano é novo, ou que eu tenho um mês para usar um milhão de minutos, ou que perderia os minutos de crédito que já tenho... Se estão tendo que me ligar para me oferecer qualquer coisa, é porque é ruim para mim e bom para eles. Se fosse bom para mim, escondiam.
... ou pôri pacotes de minutos. O Sr continuaresidindo norio de Janeiro?
Repare que o moço não perguntou se eu queria ou não aceitar a promoção. Presumiu que sim e já estava preenchendo o formulário. Eu é que tinha que dizer que não queria e, se não estivesse atento às sutilezas da conversa, já estaria concordando! Pode isso?
-- Continuo, mas não quero.
-- E isso seria puriquê o Sr já tem outro caritâo?
Eu ia até dar uma desculpa qualquer para não ter que ficar entrando em detalhes sobre minha vida, que é minha e privada e ele não tem nada com ela. Foi só no meio da resposta a seguir que me dei conta: eu NÃO TENHO que dar satisfações da minha vida, minhas razões são minhas e minhas apenas.
-- Não, seria porque... Peraí!
Esse “peraí” foi para mim mesmo, não para ele.
... Peraí! Eu não tenho que dizer por que não quero. Eu não quero.
-- Mas, Sr [censurado], seria para eu fazer um comparativo.
-- Considere feito. Se alguém lhe perguntar, pode dizer que fez.
-- Mas, no caso
Já reparou como essas pessoas adoram dizer “no caso”? Eu já estou de saco cheio de quem diz “no caso”. É óbvio que é no caso! Ele está falando deste meu caso, não de outro! Essa expressão está sobrando!
-- Mas, no caso, eu nâo fice.
-- Pois então diga que não. Mas não precisa fazer comparativo.
Ficou meio segundo em silêncio do outro lado.
-- A [operadora] agradece a gentileza e deseja ao Sr uma boa táride.
-- Boa tarde.
-- É da [operadora de celular]. Você atende?
Sempre atendo quando é de lá. Porque podem estar querendo me comunicar que, na percepção deles, haja alguma irregularidade, que eu esteja devendo (embora não esteja), que a fatura vá atrasar neste mês etc. Se houver mesmo um soluço desses, não quero ficar sem saber; depois eles sempre poderiam alegar, em juízo, que haviam me avisado ou tentado me avisar. É preciso tirar-lhes essa vantagem. Então, atendo sempre.
-- Boa táride, Sr [censurado]?
-- Sou eu.
-- Sr [censurado], aqui é [Fulano], da [operadora], tudo bem?
-- E aí, beleza?
-- Tudo bem. Sr [censurado], eu icitou ligândo puriquê o Sr foi icicolhido como nosso cliente preferencial
Acho que TODOS os clientes deles são “escolhidos como clientes preferenciais”. Na hipótese mais exclusiva, devem ser, no mínimo, todos os que pagam em dia. Mas acho que são todos todos mesmo.
... como nosso cliente preferencial para pariticipar do [operadora] Clube [bandeira de cartão de crédito], onde o Sr, Sr [censurado], utilizando o caritâo, o Sr acumula pontos, podendo torocar esses pontos pôri telefones celulares da [operadora] ou pôri pacotes de minutos.
Tenho certeza de que é mentira. Sempre é mentira. Quando eu fosse resgatar esses pontos, eles viriam com as letrinhas pequenas, dizendo que meu contrato não permite, ou que não nessas condições, ou que só se tivesse usado tantos minutos excedentes, ou só se não tivesse usado nenhum minuto excedente, ou que eu tinha que me cadastrar antes, ou que eu tinha que solicitar antes, ou que teria um débito a mais na fatura... Mesmo que não, os pacotes de minutos também têm sempre um catch: diriam que a legislação mudou, ou que meu plano não permite, ou que meu limite não cobre, ou que meu plano é antigo, ou que meu plano é novo, ou que eu tenho um mês para usar um milhão de minutos, ou que perderia os minutos de crédito que já tenho... Se estão tendo que me ligar para me oferecer qualquer coisa, é porque é ruim para mim e bom para eles. Se fosse bom para mim, escondiam.
... ou pôri pacotes de minutos. O Sr continuaresidindo norio de Janeiro?
Repare que o moço não perguntou se eu queria ou não aceitar a promoção. Presumiu que sim e já estava preenchendo o formulário. Eu é que tinha que dizer que não queria e, se não estivesse atento às sutilezas da conversa, já estaria concordando! Pode isso?
-- Continuo, mas não quero.
-- E isso seria puriquê o Sr já tem outro caritâo?
Eu ia até dar uma desculpa qualquer para não ter que ficar entrando em detalhes sobre minha vida, que é minha e privada e ele não tem nada com ela. Foi só no meio da resposta a seguir que me dei conta: eu NÃO TENHO que dar satisfações da minha vida, minhas razões são minhas e minhas apenas.
-- Não, seria porque... Peraí!
Esse “peraí” foi para mim mesmo, não para ele.
... Peraí! Eu não tenho que dizer por que não quero. Eu não quero.
-- Mas, Sr [censurado], seria para eu fazer um comparativo.
-- Considere feito. Se alguém lhe perguntar, pode dizer que fez.
-- Mas, no caso
Já reparou como essas pessoas adoram dizer “no caso”? Eu já estou de saco cheio de quem diz “no caso”. É óbvio que é no caso! Ele está falando deste meu caso, não de outro! Essa expressão está sobrando!
-- Mas, no caso, eu nâo fice.
-- Pois então diga que não. Mas não precisa fazer comparativo.
Ficou meio segundo em silêncio do outro lado.
-- A [operadora] agradece a gentileza e deseja ao Sr uma boa táride.
-- Boa tarde.
30 janeiro 2007
Atoz, o profeta
Eu em outubro de 2006:
http://sratoz.blogspot.com/2006/10/profecias-para-2007-2010.html
O Globo Online hoje:
Cabral corta verbas na Educação e na Uerj
Atoz nunca se engana.
http://sratoz.blogspot.com/2006/10/profecias-para-2007-2010.html
O Globo Online hoje:
Cabral corta verbas na Educação e na Uerj
Atoz nunca se engana.
20 dezembro 2006
Stanley Kubrick conseguiu o que queria
Agora há pouco, quando voltei do almoço, havia uma orquestra tocando no saguão do térreo. Quando a porta automática se abriu, ouvi os acordes finais do Danúbio Azul.
É impressionante: instantaneamente, o pensamento que eu tinha na hora (e que esqueci qual era) foi substituído pela imagem de uma estação espacial em forma de roda, girando lentamente em órbita terrestre. É uma associação inevitável e impossível de se desfazer, gravada a fogo em meus bancos de memória.
É impressionante: instantaneamente, o pensamento que eu tinha na hora (e que esqueci qual era) foi substituído pela imagem de uma estação espacial em forma de roda, girando lentamente em órbita terrestre. É uma associação inevitável e impossível de se desfazer, gravada a fogo em meus bancos de memória.
08 novembro 2006
Tema comum: violência
Em 2001, o livro, Arthur Clarke propõe um exercício de imaginação: suponha que você fosse um computador ciente da própria identidade, com uma mente treinada e que nunca dormiu. Confrontado com a possibilidade de desligamento, qual seria sua reação? Através das especulações de Bowman, ele traz duas respostas. Uma é o pânico. Hal estaria demonstrando pânico ao tentar argumentar com Dave (o que, aliás, parece-me patente no filme). Outra é que o pânico se torna compreensível quando percebemos que Hal não sabia o que era ser desligado, já que nunca o fora. Seu medo era o medo da morte. Então, ele estava agindo em uma autodefesa fundada em um temor genuíno, não fingido.
Lembrei-me disso porque estou ouvindo Perfect Sense, parte I, do Rogério das Águas, que, ao menos nesta versão ao vivo (não sei como é a original), vem com uma gravação do Hal, "stop, Dave. I can feel my mind... going... there is no question about it...", completa com a respiração do astronauta. Toda vez que ouço, choca-me.
Lembrei-me disso porque estou ouvindo Perfect Sense, parte I, do Rogério das Águas, que, ao menos nesta versão ao vivo (não sei como é a original), vem com uma gravação do Hal, "stop, Dave. I can feel my mind... going... there is no question about it...", completa com a respiração do astronauta. Toda vez que ouço, choca-me.
07 novembro 2006
Estou mentindo, disse a máquina -- e deu GPF
Há pouco, o noticiário falava nas conquistas das mulheres no mercado de trabalho. Um analista comentava que, no Brasil, vinha-se avançando contra o preconceito.
Então, proponho uma perguntinha. Não precisa responder agora. Se um sujeito diz que não contrata mulheres porque não gosta de contratar mulheres, isso é preconceito? Se ele adota essa política fundado tão-sòmente em seu gosto, pode-se dizer que seja preconceituoso? Considere que a afirmação seja genuína: ele não tem nada contra as mulheres, não vê nada de errado, apenas não gosta de contratá-las. Isso é preconceito?
Estenda isso a qualquer grupo. Se alguém diz que não gosta de negros, ou que não gosta de judeus, ou de homossexuais, de anões, de malabaristas, de motoristas, de brancos, de heterossexuais -- isso é preconceito? É importante observar que a afirmação é de não gostar, não contendo qualquer juízo de valor, sobre o grupo em questão ser bom, ruim, bonito, feio, inteligente ou burro. A pessoa que afirma está, em princípio, expressando uma verdade: ela realmente não gosta, e nada afirma sobre esse grupo do qual não gosta.
Você pode considerar que sim, que isso é ser preconceituoso. Mas, então, qual é o preconceito? Qual é a opinião que está sendo emitida pré-conceito, antes do conceito, sem se ter chegado a um conceito? A opinião que está sendo afirmada é uma opinião sobre si mesmo: avalia a si mesmo e, como resultado dessa avaliação, conclui que não gosta de alguma coisa, de alguém ou de alguéns. É essa a conclusão que está sob crítica. Argumenta-se que esteja errada, que não corresponda aos fatos. Portanto -- conclui-se -- os fatos negam aquela afirmação. Portanto, não é fato que o sujeito não-goste, mas que goste, sim, dos alguéns. Mas espere: assim como gosta daquele grupo, o raciocínio vale para todos, especialmente para aqueles de que ostensivamente declara gostar, e segue-se que gosta dos demais também. A lógica dita que o sujeito goste de todo o mundo, não podendo deixar de gostar de algum grupo. Então, se afirma que não gosta de negros ou de judeus, necessariamente é porque gosta de negros, de judeus, de brancos, amarelos, pardos, cinzas, azuis, goyin, heterossexuais, bissexuais, pansexuais, Sergueis e marcianos.
Pode-se dizer que o preconceito esteja em não-gostar do grupo inteiro, que o sujeito não chegou a conhecer todas as pessoas do grupo e que está sendo preconceituoso ao ter certeza de não-gostar de todos quando, na verdade, ainda não viu todos para saber. O preconceito está em pegar o que sabe (sabe que não gosta do que viu) e generalizar para algo que não sabe (não sabe se realmente não-gostará de todos). O preconceito está em afirmar que não-gostará antes mesmo de ver.
Sob essa óptica, o mesmo vale para tudo. "Não gosto de peças de teatro" -- mas não vi todas, pode ser que haja uma de que venha a gostar. "Não gosto de girassóis amarelos" -- mas não vi todos, pode haver um girassol amarelo que me atraia (tema para pesquisa: van Gogh). O preconceito está em generalizar, em adotar uma regra, fechando-se a possibilidades não percebidas.
Aí temos outro problema. Não podemos generalizar nunca? Nunca mesmo? Nem uma vezinha só? Não. Toda generalização é preconceituosa. Peraí, toda generalização? É. Toda. Inclusive essa? Não, essa não, só as outras. Então, nem toda generalização é preconceituosa, porque essa não é.
Então, proponho uma perguntinha. Não precisa responder agora. Se um sujeito diz que não contrata mulheres porque não gosta de contratar mulheres, isso é preconceito? Se ele adota essa política fundado tão-sòmente em seu gosto, pode-se dizer que seja preconceituoso? Considere que a afirmação seja genuína: ele não tem nada contra as mulheres, não vê nada de errado, apenas não gosta de contratá-las. Isso é preconceito?
Estenda isso a qualquer grupo. Se alguém diz que não gosta de negros, ou que não gosta de judeus, ou de homossexuais, de anões, de malabaristas, de motoristas, de brancos, de heterossexuais -- isso é preconceito? É importante observar que a afirmação é de não gostar, não contendo qualquer juízo de valor, sobre o grupo em questão ser bom, ruim, bonito, feio, inteligente ou burro. A pessoa que afirma está, em princípio, expressando uma verdade: ela realmente não gosta, e nada afirma sobre esse grupo do qual não gosta.
Você pode considerar que sim, que isso é ser preconceituoso. Mas, então, qual é o preconceito? Qual é a opinião que está sendo emitida pré-conceito, antes do conceito, sem se ter chegado a um conceito? A opinião que está sendo afirmada é uma opinião sobre si mesmo: avalia a si mesmo e, como resultado dessa avaliação, conclui que não gosta de alguma coisa, de alguém ou de alguéns. É essa a conclusão que está sob crítica. Argumenta-se que esteja errada, que não corresponda aos fatos. Portanto -- conclui-se -- os fatos negam aquela afirmação. Portanto, não é fato que o sujeito não-goste, mas que goste, sim, dos alguéns. Mas espere: assim como gosta daquele grupo, o raciocínio vale para todos, especialmente para aqueles de que ostensivamente declara gostar, e segue-se que gosta dos demais também. A lógica dita que o sujeito goste de todo o mundo, não podendo deixar de gostar de algum grupo. Então, se afirma que não gosta de negros ou de judeus, necessariamente é porque gosta de negros, de judeus, de brancos, amarelos, pardos, cinzas, azuis, goyin, heterossexuais, bissexuais, pansexuais, Sergueis e marcianos.
Pode-se dizer que o preconceito esteja em não-gostar do grupo inteiro, que o sujeito não chegou a conhecer todas as pessoas do grupo e que está sendo preconceituoso ao ter certeza de não-gostar de todos quando, na verdade, ainda não viu todos para saber. O preconceito está em pegar o que sabe (sabe que não gosta do que viu) e generalizar para algo que não sabe (não sabe se realmente não-gostará de todos). O preconceito está em afirmar que não-gostará antes mesmo de ver.
Sob essa óptica, o mesmo vale para tudo. "Não gosto de peças de teatro" -- mas não vi todas, pode ser que haja uma de que venha a gostar. "Não gosto de girassóis amarelos" -- mas não vi todos, pode haver um girassol amarelo que me atraia (tema para pesquisa: van Gogh). O preconceito está em generalizar, em adotar uma regra, fechando-se a possibilidades não percebidas.
Aí temos outro problema. Não podemos generalizar nunca? Nunca mesmo? Nem uma vezinha só? Não. Toda generalização é preconceituosa. Peraí, toda generalização? É. Toda. Inclusive essa? Não, essa não, só as outras. Então, nem toda generalização é preconceituosa, porque essa não é.
Na própria carne
Então. Um minuto atrás, eu estava ouvindo -- ainda estou -- o In the Flesh, do Rogério das Águas, que ganhei de presente (e o melhor de tudo: fui eu que escolhi. Coisa boa, esses vales-presentes da Saraiva). Estava tocando The Happiest Days of Our Lives. No The Wall, quando chega nos versos "But in our town it was well known (...)", o vocalista é o mesmo, dá só um efeito sonoro, uma espécie assim de eco. Mas, no In the Flesh, são as três cantoras que fazem as vozes, sem o Rogério e de modo bem agressivo, mais alto do que no original. Fica muito bom, mas o melhor é que é súbito, pelo menos para mim, que não sabia.
30 outubro 2006
Bala encontrada
Essa semana, eu estava estudando no quarto, tudo em silêncio, uma típica tarde tranqüila, não?, quando escutei, PÁ-pá!, um estrondo seco e bem próximo.
Procurando na área de serviço, encontrei o vidro na horizontal, aberto para o vento circular por entre a roupa a secar, com um furo redondo e várias rachaduras radiais. No chão, uma balinha de revólver, ainda quente.
Se o vidro estivesse fechado, não teria sido atingido. A trajetória muito mergulhante indica que o disparo foi longe, tão longe que não o ouvimos, descrevendo aquela parábola imperfeita que estudamos na escola.
Quem perdeu a bala, venha pegar, por favor.
Agora, é o seguinte. Aqui é o melhor País do mundo! Não há outro melhor para se viver. Não existe nada melhor do que nossos esgotos a céu aberto, nossa ausência de serviços públicos, nossa carência de escolas, nossa cultura opressora e totalitária.
Mas eu também sei que aquela arma NÃO DEVERIA ESTAR NA MÃO DO MARGINAL DE BEIÇO CAÍDO que a disparou. O ESTADO ESTÁ SE OMITINDO, não está fazendo a parte que lhe cabe. Não sou eu que tenho que me desarmar, eu, desarmado. O Estado é que tem que tomar a arma daquele iletrado. Desarmamento é o @#$%&*§! Nessas horas, eu penso naquelas velhas fazendo passeata de branco em Ipanema. O problema não é delas, não é mesmo? "Desarmamento", "paz", e seus netos enchendo o nariz de pó.
O mais interessante nesta história é o estado permanente de ameaça que se vive. Perceba que não há aviso, não há sequer a ordem da "bolsa ou a vida". Simplesmente uma bala entra na sua casa e pode acertar você, que talvez estivesse mais seguro na rua, e te mata a troco de nada. Não é como você se envolver em uma briga ou coisa parecida. Eu estava dentro da minha casa e, se estivesse lavando roupa, estaria morto! É um completo sentimento de aleatoriedade. Você se dá por sortudo e agradece não ter sido dessa vez, e está completamente à mercê da generosidade dos marginais filhos da puta, que escolhem quando vão permitir que você viva e quando não.
Procurando na área de serviço, encontrei o vidro na horizontal, aberto para o vento circular por entre a roupa a secar, com um furo redondo e várias rachaduras radiais. No chão, uma balinha de revólver, ainda quente.
Se o vidro estivesse fechado, não teria sido atingido. A trajetória muito mergulhante indica que o disparo foi longe, tão longe que não o ouvimos, descrevendo aquela parábola imperfeita que estudamos na escola.
Quem perdeu a bala, venha pegar, por favor.
Agora, é o seguinte. Aqui é o melhor País do mundo! Não há outro melhor para se viver. Não existe nada melhor do que nossos esgotos a céu aberto, nossa ausência de serviços públicos, nossa carência de escolas, nossa cultura opressora e totalitária.
Mas eu também sei que aquela arma NÃO DEVERIA ESTAR NA MÃO DO MARGINAL DE BEIÇO CAÍDO que a disparou. O ESTADO ESTÁ SE OMITINDO, não está fazendo a parte que lhe cabe. Não sou eu que tenho que me desarmar, eu, desarmado. O Estado é que tem que tomar a arma daquele iletrado. Desarmamento é o @#$%&*§! Nessas horas, eu penso naquelas velhas fazendo passeata de branco em Ipanema. O problema não é delas, não é mesmo? "Desarmamento", "paz", e seus netos enchendo o nariz de pó.
O mais interessante nesta história é o estado permanente de ameaça que se vive. Perceba que não há aviso, não há sequer a ordem da "bolsa ou a vida". Simplesmente uma bala entra na sua casa e pode acertar você, que talvez estivesse mais seguro na rua, e te mata a troco de nada. Não é como você se envolver em uma briga ou coisa parecida. Eu estava dentro da minha casa e, se estivesse lavando roupa, estaria morto! É um completo sentimento de aleatoriedade. Você se dá por sortudo e agradece não ter sido dessa vez, e está completamente à mercê da generosidade dos marginais filhos da puta, que escolhem quando vão permitir que você viva e quando não.
Encontros
Na tarde da última sexta-feira, estava eu esperando ônibus em frente de casa quando ouvi o típico assobio esporrento de um jato de combate. Olhei exatamente para cima, e ali estava uma forma em delta (você pensa em Mirage) com um grande tanque sob cada asa. Mas Mirage não tem cauda. Portanto, era um A-4 da Marinha. Baixinho! e entrou em uma nuvem.
Na tarde de sábado, vi de perto o 737 LV-BAX das Aerolineas Argentinas, o 737-300 -GLQ da Gol, o 737 provável -800 PR-GTF da Gol, um A340 da TAP, um 777, dois 767, um C-99 da FAB, um C-130 cinza da FAB, dois C-130 camuflados da FAB, um 707 branco da FAB, um Brasília da FAB, um C-130 da FAB todo em primer amarelo, um Gulfstream a jato e outras aves.
Na tarde de sábado, vi de perto o 737 LV-BAX das Aerolineas Argentinas, o 737-300 -GLQ da Gol, o 737 provável -800 PR-GTF da Gol, um A340 da TAP, um 777, dois 767, um C-99 da FAB, um C-130 cinza da FAB, dois C-130 camuflados da FAB, um 707 branco da FAB, um Brasília da FAB, um C-130 da FAB todo em primer amarelo, um Gulfstream a jato e outras aves.
Profecias para 2007-2010
Lula ganhar, Alckmin ganhar, mais ou menos tanto faz. Algo de bom ainda se extrai, qualquer que seja o condenado.
Agora, Sérgio Cabral ganhar... Então, anotem aí estas profecias e podem me cobrar durante os próximos quatro anos:
1) de 2007 a 2010, não haverá concurso público para o Poder Executivo no Estado do Rio de Janeiro, salvo para a PGE;
2) as contratações para o Poder Executivo no Estado do Rio de Janeiro serão por análise de currículo e entrevista e sempre a título precário, em particular as contratações para o DETRAN;
3) até 2010, a UERJ será extinta.
Tomara que eu esteja errado.
Agora, Sérgio Cabral ganhar... Então, anotem aí estas profecias e podem me cobrar durante os próximos quatro anos:
1) de 2007 a 2010, não haverá concurso público para o Poder Executivo no Estado do Rio de Janeiro, salvo para a PGE;
2) as contratações para o Poder Executivo no Estado do Rio de Janeiro serão por análise de currículo e entrevista e sempre a título precário, em particular as contratações para o DETRAN;
3) até 2010, a UERJ será extinta.
Tomara que eu esteja errado.
Tremei
Na minha vida, é muito freqüente eu ser avaliado por pessoas que sabem menos do que eu sobre a matéria em análise. Isso gera um temor e uma insegurança que você pode imaginar.
Não, não estou sendo arrogante, as questões são mal formuladas mesmo. Por exemplo, em uma prova que fiz há pouco tempo, havia esta questão.
"3) Na oração 'havia um rei que causava espanto' o sujeito é:" (seguiam-se as opções).
Agora, veja: há duas orações. Uma é a oração principal, "havia um rei", outra é a subordinada adjetiva, "que causava espanto". Agora, diga-me, qual é a oração a que se refere o enunciado? A primeira é oração sem sujeito; na segunda, o sujeito é simples -- e, òbviamente, há as duas opções.
Freqüentemente me deparo com situações onde NÃO EXISTE resposta certa e tenho que adivinhar qual é a que o avaliador imbecil reputa correta. Essa semana, fui avaliado por uma psicóloga que pronunciava "laRGAta".
Agora me diga, qual é a chance que eu tenho perante uma PISCICÓLOGA (uma pessoa que estuda peixes) que pronuncia "laRGAta"? E uma pessoa dessas está me *avaliando*.
Não, não estou sendo arrogante, as questões são mal formuladas mesmo. Por exemplo, em uma prova que fiz há pouco tempo, havia esta questão.
"3) Na oração 'havia um rei que causava espanto' o sujeito é:" (seguiam-se as opções).
Agora, veja: há duas orações. Uma é a oração principal, "havia um rei", outra é a subordinada adjetiva, "que causava espanto". Agora, diga-me, qual é a oração a que se refere o enunciado? A primeira é oração sem sujeito; na segunda, o sujeito é simples -- e, òbviamente, há as duas opções.
Freqüentemente me deparo com situações onde NÃO EXISTE resposta certa e tenho que adivinhar qual é a que o avaliador imbecil reputa correta. Essa semana, fui avaliado por uma psicóloga que pronunciava "laRGAta".
Agora me diga, qual é a chance que eu tenho perante uma PISCICÓLOGA (uma pessoa que estuda peixes) que pronuncia "laRGAta"? E uma pessoa dessas está me *avaliando*.
23 outubro 2006
"Open the pod bay doors, please, Hal."
Quando vi 2001, o que mais me impressionou foi aquele olho silencioso do Hal. Tudo vendo, tudo sabendo, mas, pior do que isso, pensando sem parar, pensando, pensando -- e você não tem como saber o quê. Mesmo antes de ele apresentar sinais de loucura homicida, aquele olho vermelho está lá, impassível, vigilante, matutando, impenetrável.
Considere o seguinte: sua velocidade de processamento é alguns milhões de vezes maior do que a dos humanos. Então, em uma conversa, você nem terminou a frase, mas ele já tem uma resposta. Mesmo assim, Hal mantém aquele tom de voz calmo, impassível, com uma perturbadora vontade de tranqüilizar os astronautas em tudo que diz. E é impossível escrutinizar qualquer emoção que ele pudesse estar emulando, porque não há tom de voz, não há alterações de freqüência, não há ênfases, apenas uma tranqüilidade artificial, fingida. Parece que ele já tem todo o esquema montado, todo o xadrez traçado, e que os astronautas são apenas ratinhos sendo manipulados em seu experimento maquiavélico (no sentido técnico do termo).
E faz pausas. Por que um computador faria pausas? Estará escolhendo o que dizer? Imagine que zilhões de pensamentos passam por seus circuitos naquele um segundo que ele demora a responder. Quanta hesitação pode haver ali, quanta malícia? Mesmo que ele não tenha "má tenção", como outrora se dizia, òbviamente algo não está bem, ainda que seja (e especialmente se for) simples loucura mesmo. Pense em tudo que Hal elabora antes de se manifestar, todas as variáveis que considera. Definitivamente, o pior de tudo são as pausas.
Você fica pensando por que ele quer esse efeito, o que ele estará tramando. Os caras estão numa gaiola, completamente à mercê de um computador lunático que tem o dedo nos botões do suporte de vida e da mesma propulsão que pode arremessá-los para fora do Sistema Solar. E é inútil perguntar a ele, porque ele mente descaradamente. Em sentido literal, porque não tem sequer um rosto, é uma ameaça onipresente e onisciente.
No livro, para minha surpresa, não há aquela cena do diálogo das duas vítimas dentro de um módulo, pretendendo escapar aos ouvidos eletrônicos mas esquecendo-se da leitura labial. O diálogo é bem mais curto e sutil, traduzindo uma angústia sob o disfarce intencional da casualidade. Fica evidente que é o único recurso dos cérebros orgânicos para não se deixarem trair diante do cérebro de silício, a ponto de você, Leitor, não ter certeza se o diálogo realmente é o que parece, quase uma linguagem cifrada. É nesse momento que a história passa do suspense ao terror.
Não lembro como é no filme, mas a impressão que dá é a de que a falha da unidade AE 35 seja uma tentativa de Hal de conseguir seu objetivo sem a necessidade de matar alguém. Só que vem um comunicado da Terra e ele é forçado a radicalizar, cortando a mensagem antes que chegue aos tripulantes, em um instante de interferência tão claramente proposital que nem os australopitecos do início do filme entenderiam de forma diferente. Pensando enquanto digito isto, agora me ocorre que ele provavelmente já havia escutado toda a mensagem, escolhendo o momento de cortá-la -- afinal, ele tinha o comando do rádio, ele sabia em que instante a mensagem havia chegado; Bowman e Poole jamais desconfiariam de já estar recebendo as notícias em segunda mão. De todo modo, quando o computador corta a transmissão, fica claro para os três que os três sabem que Hal está mentindo. Estou certo de que os dois humanos falham miseràvelmente em convencer o terceiro tripulante de que acreditam nele.
Quando Poole vai lá fora pela segunda vez, há uma cena de súbito horror que não está no filme: só Bowman percebe que Hal não reagiu a um determinado comando de Poole da maneira rotineira, embora parecesse obedecer solìcitamente. A morte de Frank Poole é mostrada de um modo mais aterrorizante do que no filme.
Este é o ponto onde estou, 68 % de meu exemplar. Já quase perdi a estação do Metrô por causa dele.
Considere o seguinte: sua velocidade de processamento é alguns milhões de vezes maior do que a dos humanos. Então, em uma conversa, você nem terminou a frase, mas ele já tem uma resposta. Mesmo assim, Hal mantém aquele tom de voz calmo, impassível, com uma perturbadora vontade de tranqüilizar os astronautas em tudo que diz. E é impossível escrutinizar qualquer emoção que ele pudesse estar emulando, porque não há tom de voz, não há alterações de freqüência, não há ênfases, apenas uma tranqüilidade artificial, fingida. Parece que ele já tem todo o esquema montado, todo o xadrez traçado, e que os astronautas são apenas ratinhos sendo manipulados em seu experimento maquiavélico (no sentido técnico do termo).
E faz pausas. Por que um computador faria pausas? Estará escolhendo o que dizer? Imagine que zilhões de pensamentos passam por seus circuitos naquele um segundo que ele demora a responder. Quanta hesitação pode haver ali, quanta malícia? Mesmo que ele não tenha "má tenção", como outrora se dizia, òbviamente algo não está bem, ainda que seja (e especialmente se for) simples loucura mesmo. Pense em tudo que Hal elabora antes de se manifestar, todas as variáveis que considera. Definitivamente, o pior de tudo são as pausas.
Você fica pensando por que ele quer esse efeito, o que ele estará tramando. Os caras estão numa gaiola, completamente à mercê de um computador lunático que tem o dedo nos botões do suporte de vida e da mesma propulsão que pode arremessá-los para fora do Sistema Solar. E é inútil perguntar a ele, porque ele mente descaradamente. Em sentido literal, porque não tem sequer um rosto, é uma ameaça onipresente e onisciente.
No livro, para minha surpresa, não há aquela cena do diálogo das duas vítimas dentro de um módulo, pretendendo escapar aos ouvidos eletrônicos mas esquecendo-se da leitura labial. O diálogo é bem mais curto e sutil, traduzindo uma angústia sob o disfarce intencional da casualidade. Fica evidente que é o único recurso dos cérebros orgânicos para não se deixarem trair diante do cérebro de silício, a ponto de você, Leitor, não ter certeza se o diálogo realmente é o que parece, quase uma linguagem cifrada. É nesse momento que a história passa do suspense ao terror.
Não lembro como é no filme, mas a impressão que dá é a de que a falha da unidade AE 35 seja uma tentativa de Hal de conseguir seu objetivo sem a necessidade de matar alguém. Só que vem um comunicado da Terra e ele é forçado a radicalizar, cortando a mensagem antes que chegue aos tripulantes, em um instante de interferência tão claramente proposital que nem os australopitecos do início do filme entenderiam de forma diferente. Pensando enquanto digito isto, agora me ocorre que ele provavelmente já havia escutado toda a mensagem, escolhendo o momento de cortá-la -- afinal, ele tinha o comando do rádio, ele sabia em que instante a mensagem havia chegado; Bowman e Poole jamais desconfiariam de já estar recebendo as notícias em segunda mão. De todo modo, quando o computador corta a transmissão, fica claro para os três que os três sabem que Hal está mentindo. Estou certo de que os dois humanos falham miseràvelmente em convencer o terceiro tripulante de que acreditam nele.
Quando Poole vai lá fora pela segunda vez, há uma cena de súbito horror que não está no filme: só Bowman percebe que Hal não reagiu a um determinado comando de Poole da maneira rotineira, embora parecesse obedecer solìcitamente. A morte de Frank Poole é mostrada de um modo mais aterrorizante do que no filme.
Este é o ponto onde estou, 68 % de meu exemplar. Já quase perdi a estação do Metrô por causa dele.
22 outubro 2006
Tarde no aeroporto
Fiquei acompanhando o final do táxi até a pista que estava sendo usada para decolagem naquela tarde. Pensei nela, com seu cabelo arrumado em rabicho-de-cavalo, na expectativa de uma criança, olhando a pista à sua direita, imensa até o interior da Ilha. Claro, seu cabelo não estaria assim, ela havia acabado de cortar.
O avião ganhava velocidade e imaginei-a comprimida contra a poltrona, as oscilações carregando-a, pequena bonequinha à mercê da aerodinâmica, até afinal a rotação, e a pequena nave ganhando os ares, às exatas 15:11:59. Acompanhei sua subida, uma quebra para a esquerda, outra subida ainda acelerando, imaginei-a sendo levada, inerte, tão pequena com sua cabecinha tão impotente na frente daquele assento enorme, nada podendo fazer senão observar enquanto o lift determinava seus movimentos, passivamente acompanhando as inclinações precisas das asas, suaves embora sob os comandos daquele que os pilotos de caças chamam de motorista de ônibus.
A nave passou à frente de variados tons de cinza do céu tempestuoso, ora aparecendo mais, ora sumindo, sempre visível para quem soubesse para onde olhar, até uma nova quebra para a direita, e aquele avião, que eu vira branco ao sol, já era uma linha, um pequeno traço pretinho horizontal, que ràpidamente se afastava para a direita, visìvelmente bem mais veloz do que quando subia. Mais para a direita, mais para a direita, até sumir atrás do edifício do aeroporto.
Tantas vezes ficamos distantes assim, mas nunca é fácil.
O avião ganhava velocidade e imaginei-a comprimida contra a poltrona, as oscilações carregando-a, pequena bonequinha à mercê da aerodinâmica, até afinal a rotação, e a pequena nave ganhando os ares, às exatas 15:11:59. Acompanhei sua subida, uma quebra para a esquerda, outra subida ainda acelerando, imaginei-a sendo levada, inerte, tão pequena com sua cabecinha tão impotente na frente daquele assento enorme, nada podendo fazer senão observar enquanto o lift determinava seus movimentos, passivamente acompanhando as inclinações precisas das asas, suaves embora sob os comandos daquele que os pilotos de caças chamam de motorista de ônibus.
A nave passou à frente de variados tons de cinza do céu tempestuoso, ora aparecendo mais, ora sumindo, sempre visível para quem soubesse para onde olhar, até uma nova quebra para a direita, e aquele avião, que eu vira branco ao sol, já era uma linha, um pequeno traço pretinho horizontal, que ràpidamente se afastava para a direita, visìvelmente bem mais veloz do que quando subia. Mais para a direita, mais para a direita, até sumir atrás do edifício do aeroporto.
Tantas vezes ficamos distantes assim, mas nunca é fácil.
A sentinela
"Nearly a hundred thousand million stars are turning in the circle of the Milky Way, and long ago other races on the worlds of other suns must have scaled and passed the heights that we have reached. Think of such civilisations, far back in time against the fading afterglow of Creation, masters of a universe so young that life as yet had come only to a handful of worlds. Theirs would have been a loneliness we cannot imagine, the loneliness of gods looking out across infinity and finding none to share their thoughts.
"They must have searched the star clusters as we have searched the planets. Everywhere there would be worlds, but they would be empty or peopled with crawling, mindless things. Such was our own Earth, the smoke of the great volcanoes still staining the skies, when that first ship of the people of the dawn came sliding in from the abyss beyond Pluto. It passed the frozen outer worlds, knowing that life could play no part in their destinies. It came to rest among the inner planets, warming themselves around the fire of the Sun and waiting for their stories to begin."
-- Arthur Clarke, The Sentinel, 1948.
Eu terminei de ler esse trecho e fiquei com os olhos arregalados, olhando o vazio. Já o reli algumas vezes. Segundo o Autor, 2001 não é "baseado" no conto tanto quanto este foi a semente de onde aquele cresceu. Na verdade, descobri que eu pensava isso antes de ficar sabendo que era exatamente o que ele havia dito.
2001 apela a um sentimento de majestade. Há muita ênfase na vastidão do espaço, nas distâncias que a cabecinha humana não consegue conceber, no tempo gasto para percorrê-las, na escala e no balé cósmico dos objetos em órbita. As referências à mecânica celestial são tácitas, o que pode exigir algum conhecimento prévio.
Na viagem da Discovery a Saturno, percebe-se o extremo tédio dos tripulantes. O que me chamou mais atenção, até agora (p. 128), foi o encontro com um asteróide: o Autor conseguiu impor a sensação de um silêncio absoluto. Fez isso evitando toda e qualquer referência a vibrações, a qualquer tipo de emissão sonora ou a diálogo. Curiosamente, chegou a mencionar ecos de radar. A coincidência das trajetórias também é feita de modo a mostrar a extrema solidão, o caráter incomum da aproximação de dois objetos naquela região do espaço, o completo abandono e a certeza de não se dever esperar encontrar nada.
Outro detalhe importante é a valorização do profissional que tenha recebido uma educação generalista. Os gurus estão sempre nos dizendo que estará condenado quem não passar a vida estudando, não é mesmo? Pois era 1968 e Clarke já mostrava um comandante de missão que havia sido um estudante durante mais de metade de sua vida e que continuaria sendo até se aposentar. Além disso, já tinha o equivalente a dois ou três diplomas universitários, sendo considerado um "especialista" por qualquer pessoa formada nos anos 50 mas percebendo a si mesmo como alguém que não sabia nada de nada. Mais ainda: tendo escolhido fazer mestrado em uma área bem abrangente (contrariando os conselhos de seus professores), acabou adquirindo o perfil necessário a um comandante de missão a Saturno, que, de outro modo, não se teria tornado.
Há uma espécie de apreciação crítica das conquistas humanas, uma retrospectiva que é, ao mesmo tempo, uma celebração. Curiosamente, as proezas da técnica são atribuídas principalmente à eletrônica, o que faz sentido quando consideramos o passado profissional do Autor. Mas é impressionante a precisão com que, lá em 1968, ele previu o contexto geopolítico mundial, a ameaça de fome nos próximos dez anos e a venda de arsenais nucleares por uma pechincha, exceto que quem fez isso foi a Rússia e não a China, como no livro.
Em 1968, os computadores ainda eram analógicos e não tinham memórias de mais do que alguns kbytes. A Internet só começaria a ser praticada em 1969. Ninguém que tenha começado a usar computadores depois de 1992 consegue imaginá-los sem a interface gráfica do Windows, mas o PARC só foi revelá-la ao público em 1981. Agora, considere que, no livro, Clarke descreveu uma cena onde o Dr Floyd, desocupado nas 25 horas da estação orbital à Lua, resolve ler todos os principais jornais do mundo, para isso digitando um código (URL) em uma tela e apontando e clicando ícones de manchetes. Segundo a descrição, o volume de informação atualizado na rede a cada hora era tanto que alguém poderia passar a vida inteira só fazendo isso e, mesmo assim, não leria tudo.
Dá pra entender, não é, por que atribuíram estas frases a ele.
No ar: Touched By the Sun, de Carly Simon.
"They must have searched the star clusters as we have searched the planets. Everywhere there would be worlds, but they would be empty or peopled with crawling, mindless things. Such was our own Earth, the smoke of the great volcanoes still staining the skies, when that first ship of the people of the dawn came sliding in from the abyss beyond Pluto. It passed the frozen outer worlds, knowing that life could play no part in their destinies. It came to rest among the inner planets, warming themselves around the fire of the Sun and waiting for their stories to begin."
-- Arthur Clarke, The Sentinel, 1948.
Eu terminei de ler esse trecho e fiquei com os olhos arregalados, olhando o vazio. Já o reli algumas vezes. Segundo o Autor, 2001 não é "baseado" no conto tanto quanto este foi a semente de onde aquele cresceu. Na verdade, descobri que eu pensava isso antes de ficar sabendo que era exatamente o que ele havia dito.
2001 apela a um sentimento de majestade. Há muita ênfase na vastidão do espaço, nas distâncias que a cabecinha humana não consegue conceber, no tempo gasto para percorrê-las, na escala e no balé cósmico dos objetos em órbita. As referências à mecânica celestial são tácitas, o que pode exigir algum conhecimento prévio.
Na viagem da Discovery a Saturno, percebe-se o extremo tédio dos tripulantes. O que me chamou mais atenção, até agora (p. 128), foi o encontro com um asteróide: o Autor conseguiu impor a sensação de um silêncio absoluto. Fez isso evitando toda e qualquer referência a vibrações, a qualquer tipo de emissão sonora ou a diálogo. Curiosamente, chegou a mencionar ecos de radar. A coincidência das trajetórias também é feita de modo a mostrar a extrema solidão, o caráter incomum da aproximação de dois objetos naquela região do espaço, o completo abandono e a certeza de não se dever esperar encontrar nada.
Outro detalhe importante é a valorização do profissional que tenha recebido uma educação generalista. Os gurus estão sempre nos dizendo que estará condenado quem não passar a vida estudando, não é mesmo? Pois era 1968 e Clarke já mostrava um comandante de missão que havia sido um estudante durante mais de metade de sua vida e que continuaria sendo até se aposentar. Além disso, já tinha o equivalente a dois ou três diplomas universitários, sendo considerado um "especialista" por qualquer pessoa formada nos anos 50 mas percebendo a si mesmo como alguém que não sabia nada de nada. Mais ainda: tendo escolhido fazer mestrado em uma área bem abrangente (contrariando os conselhos de seus professores), acabou adquirindo o perfil necessário a um comandante de missão a Saturno, que, de outro modo, não se teria tornado.
Há uma espécie de apreciação crítica das conquistas humanas, uma retrospectiva que é, ao mesmo tempo, uma celebração. Curiosamente, as proezas da técnica são atribuídas principalmente à eletrônica, o que faz sentido quando consideramos o passado profissional do Autor. Mas é impressionante a precisão com que, lá em 1968, ele previu o contexto geopolítico mundial, a ameaça de fome nos próximos dez anos e a venda de arsenais nucleares por uma pechincha, exceto que quem fez isso foi a Rússia e não a China, como no livro.
Em 1968, os computadores ainda eram analógicos e não tinham memórias de mais do que alguns kbytes. A Internet só começaria a ser praticada em 1969. Ninguém que tenha começado a usar computadores depois de 1992 consegue imaginá-los sem a interface gráfica do Windows, mas o PARC só foi revelá-la ao público em 1981. Agora, considere que, no livro, Clarke descreveu uma cena onde o Dr Floyd, desocupado nas 25 horas da estação orbital à Lua, resolve ler todos os principais jornais do mundo, para isso digitando um código (URL) em uma tela e apontando e clicando ícones de manchetes. Segundo a descrição, o volume de informação atualizado na rede a cada hora era tanto que alguém poderia passar a vida inteira só fazendo isso e, mesmo assim, não leria tudo.
Dá pra entender, não é, por que atribuíram estas frases a ele.
No ar: Touched By the Sun, de Carly Simon.
Adrenalina urbana
Never give up. Never surrender. -- Capitão Quincy Taggart.
Eu estava dentro do ônibus às 11:45 h. O atendimento acabava ao meio-dia; depois, só às 14 horas. Desci do ônibus às 11:52 h, cheguei à recepção às 11:57 h, uma mulher e sua filha na minha frente. Chegou minha vez, a moça ainda disse, "ih, então tem que andar logo, que já deve tá fechando". Eu sei, minha filha. Vi a mulher e sua filha encaminhando-se ao elevador lento de repartição pública. Tá doido se eu pego esse elevador, pensei, rápido. A sala fica no terceiro andar, a escada é curta e eu conheço o caminho, não vou me arriscar, se eu subir agora chego antes dele.
Quando eu estava chegando ao segundo andar, ouvi o "pipi" do relógio digital marcando meio-dia. Ora, sei lá se o da repartição não está atrasado um minuto. Tenho que fazer a minha parte, que é correr. Cheguei ao terceiro andar e vi a porta do elevador a se abrir.
Marchei em direção à sala, o que me pôs no limite civilizado abaixo da corrida. Entrei. "Vocês tão na fila?" "Não, você é o próximo." Entrei na salinha. "Com licença, eu vim buscar uma certidão." "Pois não, entraí." -- "Sentaí, amigo, descansa um pouco." Um minuto passou-se. A moça, filha da mulher, entrou pela porta principal. "Ô Fulano, meio-dia, tem uma moça aqui. Atendo?" "Deixa entrar, mas depois fecha, agora só duas horas." Afinal, peguei meu documento, li rápido, era o meu. Saí pela porta por onde, agora, só se podia mesmo sair.
A moral da história? Só acaba quando termina. Até lá, sempre há uma possibilidade, então você luta até o final, você não se entrega, sabe lá se não é justamente esse esforço que vai fazer diferença. Aprendi isso com o Capitão Kirk.
Eu estava dentro do ônibus às 11:45 h. O atendimento acabava ao meio-dia; depois, só às 14 horas. Desci do ônibus às 11:52 h, cheguei à recepção às 11:57 h, uma mulher e sua filha na minha frente. Chegou minha vez, a moça ainda disse, "ih, então tem que andar logo, que já deve tá fechando". Eu sei, minha filha. Vi a mulher e sua filha encaminhando-se ao elevador lento de repartição pública. Tá doido se eu pego esse elevador, pensei, rápido. A sala fica no terceiro andar, a escada é curta e eu conheço o caminho, não vou me arriscar, se eu subir agora chego antes dele.
Quando eu estava chegando ao segundo andar, ouvi o "pipi" do relógio digital marcando meio-dia. Ora, sei lá se o da repartição não está atrasado um minuto. Tenho que fazer a minha parte, que é correr. Cheguei ao terceiro andar e vi a porta do elevador a se abrir.
Marchei em direção à sala, o que me pôs no limite civilizado abaixo da corrida. Entrei. "Vocês tão na fila?" "Não, você é o próximo." Entrei na salinha. "Com licença, eu vim buscar uma certidão." "Pois não, entraí." -- "Sentaí, amigo, descansa um pouco." Um minuto passou-se. A moça, filha da mulher, entrou pela porta principal. "Ô Fulano, meio-dia, tem uma moça aqui. Atendo?" "Deixa entrar, mas depois fecha, agora só duas horas." Afinal, peguei meu documento, li rápido, era o meu. Saí pela porta por onde, agora, só se podia mesmo sair.
A moral da história? Só acaba quando termina. Até lá, sempre há uma possibilidade, então você luta até o final, você não se entrega, sabe lá se não é justamente esse esforço que vai fazer diferença. Aprendi isso com o Capitão Kirk.
Deixai aqui toda esperança
Poucas vezes fui abordado por pessoas-que-acreditam-em-coisas. Nunca gastei muito tempo, nem a conversa se estendeu tanto quanto a do Alex. Mas já decidi: como parte de um experimento, na próxima vez que alguém vier me dizer como salvar minha alma do Inferno, responderei que, veja bem, na verdade eu quero é ir para lá. Vamos ver o que é que me dizem depois disso.
Como a idéia deles é que o não-crente seja punido, imagino uma resposta possível (mas improvável, já que requer muita elaboração): "então, se você fizer ao contrário do que estou dizendo, você estará condenado a ir para o Céu!"
Seria uma boa essa, não? É um jogo no qual, necessariamente, eu saio ganhando. Se perder, vou para o Céu; se ganhar, vou para aonde queria ir. Mas o Inferno é muito mais interessante: lá poderei bater altos papos com Freud (judeu e ateu, portanto está no Inferno), Einstein (judeu e ateu), Marx (ateu e comunista), Darwin (anticriacionista), Newton (que lidou com Ocultismo em seus últimos dias), Sagan (ateu), Asimov (ateu), Copérnico... A lista é longa. Na verdade, todos os pensadores independentes, todos que contrariaram a visão da Igreja e fizeram o conhecimento humano avançar, estão todos lá. Imagine quanto não poderei aprender com eles, bebendo na fonte. Imagine quantas descobertas novas não fizeram, quantas autocríticas, quanta evolução seus próprios pensamentos podem ter tido nas décadas que lá já têm passado!
Além do mais, lá pode fazer sexo, lá não tem que agüentar anjo tocando harpa, nem eu vou me deparar com as velhas carolas intoleráveis que me atazanaram a infância, já que todas fizeram tudinho que a Igreja mandava e, portanto, estarão no Céu. Sim, porque essas velhas carolas puxaram o saco de Deus exatamente como se esperava, vendendo suas almas pelo prêmio eterno.
*Se* o Inferno realmente existir, então eu quero ir pra lá JUSTAMENTE por todos os argumentos que a Igreja traz! Prefiro mil vezes ir pra lá em razão daquilo em que sinceramente acredito, em razão daquilo que realmente fiz, em conseqüência de meus valores sinceros e genuínos, a ir pro Céu em troca de suborno e fingimento de minha parte. Porque o Céu seria o próprio Inferno perante minha consciência. (Se bem que o Inferno não seria o Céu, seria o Inferno mesmo. Do ponto de vista pragmático, maquiavélico, da Realpolitik, não adianta nada esse negócio de "ser sincero", "perder mas perder orgulhoso", se você vai é se danar, aliás literalmente. Melhor vender a alma pro Céu.)
Depois, tem esta. Se Deus realmente conhece o coração dos homens, se realmente é capaz de perdoar pecados, então eu duvi-de-ó-dó que Ele fosse jogar QUALQUER UM no Inferno. Sofrimento eterno não combina com a figura. Até porque, suponha que combinasse, que ele realmente fizesse isso: vai punir um cara porque contrariou a visão dele? Isso não é um tanto mesquinho? Que Deus tão limitado teria um tal sistema penal? Sim, porque isso é um regime que pune as divergências de opinião, é um regime que persegue o dissidente político. Desse jeito, se vai me punir porque não rezei pela cartilha dele (literalmente), então, francamente, melhor ficar no Inferno do que viver eternamente sob vigilância e tirania, que são o próprio Inferno. Se vai me condenar pelo pensamento independente, então me deixa ficar no Inferno mesmo, onde todos são aceitos e não há tantas nem tão rígidas regras. Exceto, claro, que o Inferno deve ter menos água, não deve ter direito a banho de sol e visita, nem aos domingos.
Como a idéia deles é que o não-crente seja punido, imagino uma resposta possível (mas improvável, já que requer muita elaboração): "então, se você fizer ao contrário do que estou dizendo, você estará condenado a ir para o Céu!"
Seria uma boa essa, não? É um jogo no qual, necessariamente, eu saio ganhando. Se perder, vou para o Céu; se ganhar, vou para aonde queria ir. Mas o Inferno é muito mais interessante: lá poderei bater altos papos com Freud (judeu e ateu, portanto está no Inferno), Einstein (judeu e ateu), Marx (ateu e comunista), Darwin (anticriacionista), Newton (que lidou com Ocultismo em seus últimos dias), Sagan (ateu), Asimov (ateu), Copérnico... A lista é longa. Na verdade, todos os pensadores independentes, todos que contrariaram a visão da Igreja e fizeram o conhecimento humano avançar, estão todos lá. Imagine quanto não poderei aprender com eles, bebendo na fonte. Imagine quantas descobertas novas não fizeram, quantas autocríticas, quanta evolução seus próprios pensamentos podem ter tido nas décadas que lá já têm passado!
Além do mais, lá pode fazer sexo, lá não tem que agüentar anjo tocando harpa, nem eu vou me deparar com as velhas carolas intoleráveis que me atazanaram a infância, já que todas fizeram tudinho que a Igreja mandava e, portanto, estarão no Céu. Sim, porque essas velhas carolas puxaram o saco de Deus exatamente como se esperava, vendendo suas almas pelo prêmio eterno.
*Se* o Inferno realmente existir, então eu quero ir pra lá JUSTAMENTE por todos os argumentos que a Igreja traz! Prefiro mil vezes ir pra lá em razão daquilo em que sinceramente acredito, em razão daquilo que realmente fiz, em conseqüência de meus valores sinceros e genuínos, a ir pro Céu em troca de suborno e fingimento de minha parte. Porque o Céu seria o próprio Inferno perante minha consciência. (Se bem que o Inferno não seria o Céu, seria o Inferno mesmo. Do ponto de vista pragmático, maquiavélico, da Realpolitik, não adianta nada esse negócio de "ser sincero", "perder mas perder orgulhoso", se você vai é se danar, aliás literalmente. Melhor vender a alma pro Céu.)
Depois, tem esta. Se Deus realmente conhece o coração dos homens, se realmente é capaz de perdoar pecados, então eu duvi-de-ó-dó que Ele fosse jogar QUALQUER UM no Inferno. Sofrimento eterno não combina com a figura. Até porque, suponha que combinasse, que ele realmente fizesse isso: vai punir um cara porque contrariou a visão dele? Isso não é um tanto mesquinho? Que Deus tão limitado teria um tal sistema penal? Sim, porque isso é um regime que pune as divergências de opinião, é um regime que persegue o dissidente político. Desse jeito, se vai me punir porque não rezei pela cartilha dele (literalmente), então, francamente, melhor ficar no Inferno do que viver eternamente sob vigilância e tirania, que são o próprio Inferno. Se vai me condenar pelo pensamento independente, então me deixa ficar no Inferno mesmo, onde todos são aceitos e não há tantas nem tão rígidas regras. Exceto, claro, que o Inferno deve ter menos água, não deve ter direito a banho de sol e visita, nem aos domingos.
Nosso Estado democrático de Direito
Então, você vai ao belogue do Hiro e encontra sua mensagem de 18/10/2006, especìficamente o comentário sobre a Universidade de Westminster. Então, você lhe responde e recebe dele isto aqui:
> No curso da Barbara perguntaram se alguem tinha alguma disability para que eles se preparassem melhor, dando mais tempo na prova etc. O que eles consideram disability: dislexia, DDA etc. :)
Detalhe é que *não se pode* fazer essa pergunta no Brasil, porque todos os alunos vão dizer que têm problema, só pra sidarbem. É o jeitinho. "É lógico que vou dizer que tenho problema, quem não diria? É uma chance de ganhar mais tempo pra estudar!"
É por causa de imbecis assim que o sistema brasileiro (especialmente o Poder Público) SEMPRE parte do pressuposto de que você esteja mentindo. Sempre é você quem tem que provar que não está armando. Tudo isso é INCONCEBÍVEL para os europeus, que pressupõem que você seja uma pessoa responsável, que não mente, que vai agir com boa fé diante dos outros etc. Eles CONFIAM nas pessoas, presumindo que você vá ter disciplina. Aqui, são vistos como otários, justamente porque confiam, e o que não vai faltar é gente querendo levar vantagem nisso. Aqui, o inconcebível é que uma pessoa possa confiar em outra, que alguém realmente só vá pegar UM jornal da máquina -- mesmo apesar de que ninguém teria o que fazer com os outros vinte, o negócio é pegar todos porque isso é uma forma de sidarbem. Um lado nunca vai entender o outro.
Porque aqui não há disciplina: o que há são apenas relações de poder, onde alguém, com o uso da força, impede que outro faça o que quer, NÃO IMPORTANDO SE QUALQUER DOS DOIS TEM RAZÃO. Não há direitos. Portanto, não há o Direito, nem o Estado democrático de Direito.
Ah, que !@#$% tudo isso. Que ódio.
Você vai dizer que isso não é totalmente verdade, que os europeus não têm tanta confiança assim, que realmente seriam otários se sempre confiassem tanto etc. Você tem razão. Isso que eu disse não é pra ser levado de modo radical. Na verdade, eu nem daria tratamento especial a quem tivesse alguma dessas disabilities (but then, tampouco sou educador, nem tenho experiência com escola senão como aluno). Mas com uma coisa você tem que concordar: realmente este é um País onde impera o jeitinho. Ninguém tem direitos. Nem mesmo quem é rico tem direitos. O que eles têm é poder, que exercem. Francamente, se eu tivesse poder em um lugar onde ninguém tem direitos, eu também o exerceria. Deixaria meus direitos (e o respeito aos dos outros) para um lugar onde eles existissem.
A realidade torna-se ainda mais esmagadora, ainda mais insuportável, quando me dou conta de que, o mais das vezes, o sistema brasileiro está certo no julgamento que faz das pessoas: infelizmente, mentem sempre que podem mê-ji-mo!
Como romper esse ciclo? Dizendo mais a verdade? Acreditando mais nos outros? Tenho uma proposta concreta: diminuindo o número de exigências para considerar provado que tenham dito a verdade. Tornando cada vez menos relevante a veracidade do que dizem. Por exemplo: não importa se o sujeito mentiu ou não quando disse que tinha 36 anos de contribuição. Se conseguiu provar 30, já provou que tem direito ao benefício da aposentadoria. Outro exemplo: deixe de exigir cartas de recomendação. Aceite o indivíduo (ou não) independentemente da opinião de terceiros. Afinal, todos sabemos que essas cartas são impessoais, que, na maioria das vezes, quem as assina nem conhece direito seu beneficiário. Isso tornará menos provável que o sujeito forje cartas de recomendação. Você não o estará forçando à ilegalidade.
A propósito, o que também estimulou esta mensagem foi esta outra: A democracia dos privilégios, de Ana Lucia.
> No curso da Barbara perguntaram se alguem tinha alguma disability para que eles se preparassem melhor, dando mais tempo na prova etc. O que eles consideram disability: dislexia, DDA etc. :)
Detalhe é que *não se pode* fazer essa pergunta no Brasil, porque todos os alunos vão dizer que têm problema, só pra sidarbem. É o jeitinho. "É lógico que vou dizer que tenho problema, quem não diria? É uma chance de ganhar mais tempo pra estudar!"
É por causa de imbecis assim que o sistema brasileiro (especialmente o Poder Público) SEMPRE parte do pressuposto de que você esteja mentindo. Sempre é você quem tem que provar que não está armando. Tudo isso é INCONCEBÍVEL para os europeus, que pressupõem que você seja uma pessoa responsável, que não mente, que vai agir com boa fé diante dos outros etc. Eles CONFIAM nas pessoas, presumindo que você vá ter disciplina. Aqui, são vistos como otários, justamente porque confiam, e o que não vai faltar é gente querendo levar vantagem nisso. Aqui, o inconcebível é que uma pessoa possa confiar em outra, que alguém realmente só vá pegar UM jornal da máquina -- mesmo apesar de que ninguém teria o que fazer com os outros vinte, o negócio é pegar todos porque isso é uma forma de sidarbem. Um lado nunca vai entender o outro.
Porque aqui não há disciplina: o que há são apenas relações de poder, onde alguém, com o uso da força, impede que outro faça o que quer, NÃO IMPORTANDO SE QUALQUER DOS DOIS TEM RAZÃO. Não há direitos. Portanto, não há o Direito, nem o Estado democrático de Direito.
Ah, que !@#$% tudo isso. Que ódio.
Você vai dizer que isso não é totalmente verdade, que os europeus não têm tanta confiança assim, que realmente seriam otários se sempre confiassem tanto etc. Você tem razão. Isso que eu disse não é pra ser levado de modo radical. Na verdade, eu nem daria tratamento especial a quem tivesse alguma dessas disabilities (but then, tampouco sou educador, nem tenho experiência com escola senão como aluno). Mas com uma coisa você tem que concordar: realmente este é um País onde impera o jeitinho. Ninguém tem direitos. Nem mesmo quem é rico tem direitos. O que eles têm é poder, que exercem. Francamente, se eu tivesse poder em um lugar onde ninguém tem direitos, eu também o exerceria. Deixaria meus direitos (e o respeito aos dos outros) para um lugar onde eles existissem.
A realidade torna-se ainda mais esmagadora, ainda mais insuportável, quando me dou conta de que, o mais das vezes, o sistema brasileiro está certo no julgamento que faz das pessoas: infelizmente, mentem sempre que podem mê-ji-mo!
Como romper esse ciclo? Dizendo mais a verdade? Acreditando mais nos outros? Tenho uma proposta concreta: diminuindo o número de exigências para considerar provado que tenham dito a verdade. Tornando cada vez menos relevante a veracidade do que dizem. Por exemplo: não importa se o sujeito mentiu ou não quando disse que tinha 36 anos de contribuição. Se conseguiu provar 30, já provou que tem direito ao benefício da aposentadoria. Outro exemplo: deixe de exigir cartas de recomendação. Aceite o indivíduo (ou não) independentemente da opinião de terceiros. Afinal, todos sabemos que essas cartas são impessoais, que, na maioria das vezes, quem as assina nem conhece direito seu beneficiário. Isso tornará menos provável que o sujeito forje cartas de recomendação. Você não o estará forçando à ilegalidade.
A propósito, o que também estimulou esta mensagem foi esta outra: A democracia dos privilégios, de Ana Lucia.
13 outubro 2006
Sr Atoz, o Noveleiro
Você notou uma coisa? Nessa novela aí, Sinhá Moça, consideradas as leis em vigor na época (1888), a ÚNICA vítima, até agora, foi o Senhor Barão! Olha só:
- a filha foge de casa, subtraindo-se a seu pátrio poder;
- a esposa rebela-se contra sua vontade, simpatizando com arrivistas;
- o ouro, acumulado por gerações pregressas de maneira legal, é furtado;
- é forçado a alforriar os escravos mediante coação.
De resto, o Senhor Barão fez o que estava a seu alcance para defender bens que eram seus de acordo com a lei, assim como procurou defender o sistema em que acreditava. Alguma coisa ele fez que fosse contra a lei? Alguma coisa ele fez que fosse considerada sequer imoral em 1888? (Talvez tenha feito, não vi a novela toda.) Então ele bateu em alguns escravos, ele matou outros. E daí? Na época, isso era lícito e considerado necessário.
"Ah, mas, se fosse hoje, não podia." Amigo, se fosse hoje, eles não seriam escravos, de modo que ele não teria nem por que bater. Como a novela é escrita hoje, com os valores de hoje, fica muito fácil demonizar o Barão, apontar-lhe o dedo como o Grande Vilão da novela. Mas aponte sua má ação na história. Intolerância? Isso não é sequer ação. Tom de voz? Então, agora, ele é o Homem Mau da Novela porque levantou a voz dentro da própria casa (em 1888, insisto) ?
Em compensação, o mocinho fez tudo que pôde para prejudicar os interesses dele. Ou não fez tudo, não sei, que não acompanhei, só vi uns pedaços.
A vítima é o Barão.
- a filha foge de casa, subtraindo-se a seu pátrio poder;
- a esposa rebela-se contra sua vontade, simpatizando com arrivistas;
- o ouro, acumulado por gerações pregressas de maneira legal, é furtado;
- é forçado a alforriar os escravos mediante coação.
De resto, o Senhor Barão fez o que estava a seu alcance para defender bens que eram seus de acordo com a lei, assim como procurou defender o sistema em que acreditava. Alguma coisa ele fez que fosse contra a lei? Alguma coisa ele fez que fosse considerada sequer imoral em 1888? (Talvez tenha feito, não vi a novela toda.) Então ele bateu em alguns escravos, ele matou outros. E daí? Na época, isso era lícito e considerado necessário.
"Ah, mas, se fosse hoje, não podia." Amigo, se fosse hoje, eles não seriam escravos, de modo que ele não teria nem por que bater. Como a novela é escrita hoje, com os valores de hoje, fica muito fácil demonizar o Barão, apontar-lhe o dedo como o Grande Vilão da novela. Mas aponte sua má ação na história. Intolerância? Isso não é sequer ação. Tom de voz? Então, agora, ele é o Homem Mau da Novela porque levantou a voz dentro da própria casa (em 1888, insisto) ?
Em compensação, o mocinho fez tudo que pôde para prejudicar os interesses dele. Ou não fez tudo, não sei, que não acompanhei, só vi uns pedaços.
A vítima é o Barão.
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